sexta-feira, 17 de março de 2017

Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

                 Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto' 

Quando



Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

          Sophia de Mello Breyner Andresen, in Dia do Mar

Let's Put It To Music

How do you feel about me
Now that you've learned to know me?
Why don't we both admit
That something is happening.
And we would feel better if
We'd just tell each other
No need to keep it to ourselves.
Let's put it to music
Let's put it to music
Let's sing about it
Laugh about it
Clap our hands
And shout about it
Let the whole world hear it
In a sweet, sweet melody
Let's put it to music, you and me.

           Johnny Cash

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Quase um Poema de Amor


Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.

Miguel Torga

A um Jovem Poeta

A um Jovem Poeta


Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

Manuel António Pina

Amor como em Casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina

A Poesia vai acabar

A Poesia Vai Acabar

A poesia vai acabar, os poetas 
vão ser colocados em lugares mais úteis. 
Por exemplo, observadores de pássaros 
(enquanto os pássaros não 
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao 
entrar numa repartição pública. 
Um senhor míope atendia devagar 
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum 
poeta por este senhor?»    E a pergunta 
afligiu-me tanto por dentro e por 
fora da cabeça que tive que voltar a ler 
toda a poesia desde o princípio do mundo. 
Uma pergunta numa cabeça. 
— Como uma coroa de espinhos: 
estão todos a ver onde o autor quer chegar? — 

Manuel António Pina

Ler



   Ler sempre.
   Ler muito.
   Ler “quase tudo”.
   Ler com os olhos, os ouvidos, com o tacto, pelos poros e demais sentidos.
   Ler com razão e sensibilidade.
   Ler desejos, o tempo, o som do silêncio e do vento.
   Ler imagens, paisagens, viagens.
   Ler verdades e mentiras.
   Ler o fracasso, o sucesso, o ilegível, o impensável, as entrelinhas.
   Ler na escola, em casa, no campo, na estrada, em qualquer lugar.
   Ler a vida e a morte.
   Saber ser leitor, tendo o direito de saber ler.
   Ler simplesmente ler.


            Edith Chacon Theodoro