segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Quase um Poema de Amor


Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.

Miguel Torga

A um Jovem Poeta

A um Jovem Poeta


Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

Manuel António Pina

Amor como em Casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina

A Poesia vai acabar

A Poesia Vai Acabar

A poesia vai acabar, os poetas 
vão ser colocados em lugares mais úteis. 
Por exemplo, observadores de pássaros 
(enquanto os pássaros não 
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao 
entrar numa repartição pública. 
Um senhor míope atendia devagar 
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum 
poeta por este senhor?»    E a pergunta 
afligiu-me tanto por dentro e por 
fora da cabeça que tive que voltar a ler 
toda a poesia desde o princípio do mundo. 
Uma pergunta numa cabeça. 
— Como uma coroa de espinhos: 
estão todos a ver onde o autor quer chegar? — 

Manuel António Pina

Ler



   Ler sempre.
   Ler muito.
   Ler “quase tudo”.
   Ler com os olhos, os ouvidos, com o tacto, pelos poros e demais sentidos.
   Ler com razão e sensibilidade.
   Ler desejos, o tempo, o som do silêncio e do vento.
   Ler imagens, paisagens, viagens.
   Ler verdades e mentiras.
   Ler o fracasso, o sucesso, o ilegível, o impensável, as entrelinhas.
   Ler na escola, em casa, no campo, na estrada, em qualquer lugar.
   Ler a vida e a morte.
   Saber ser leitor, tendo o direito de saber ler.
   Ler simplesmente ler.


            Edith Chacon Theodoro