domingo, 19 de março de 2017

desde há muito o homem olha para o texto



desde há muito o homem olha para o texto
em busca de sinais

mas as palavras prestam-se a diferentes
abismos de luz e de sentido, qualquer
proposta insólita disparatada
pode atear um clarão de tantos promontórios
o que resulta nesta encadeada ignorância
nossa

seria assim prodigioso não tropeçar em tão
desmedido globo terrestre

e tocar, pela doutrina arcana do poema, em alguma
arredada finisterra

           Miguel Manso, in Persianas

o terraço que sobre a cozinha



o terraço que sobre a cozinha
dá a escolher como vista o pátio de um lado
ou a horta de outro

oferece agora a terceira via:
a noite intacta do enxameado céu
e os nossos olhos habituados

a ver tanta coisa aprendem assim
diante do impenetrável a ser olhados pelos gázeos
celestes, a morada dos deuses o ateliê
do Archhitecto

não façamos conta à porção de astros
são copiosos desmedidos
e o cúmulo é estar aqui sozinho em mangas
de camisa sentado
nesta açoteia deitada ao infinito

escrevo no caderno dos afazeres: trazer aqui
um inimigo
para ser pequeno comigo para fumarmos
os dois um cigarro e sobretudo

emudecermos


           Miguel Manso, in  Persianas

cada verso tem inclinado sobre si



cada verso tem inclinado sobre si
um anjo que lhe segreda a sombra
do que não dirá

há nesse cicio côncavo o lume
que acrescenta ao mundo a renovação
do seu próprio poemário

de desusada matéria doméstica
o verso desenrola-se no hálito do anjo
ocupando o lugar da promessa

marcado por humanais entraves vincos
e cesuras

         Miguel Manso, in Persianas

os textos são um retrato dos dias



os textos são um retrato dos dias

ou um salão dentro do qual repousa
uma jarra de porcelana

formas que resultam de frágil
consistência pedindo à violência o seu
imodesto exercício de tumulto

quantas gerações mais de versos
porém

queimarão à vez e com brandura estes
mesmíssimos enredos


                          Miguel Manso, in Persianas

sexta-feira, 17 de março de 2017

Carpe diem


"Carpe diem, rapazes, tornem as vossas vidas extraordinárias!(...)

Quero revelar-vos um segredo. Aproximem-se. Não lemos e escrevemos poesia só porque é giro; lemos e escrevemos poesia porque fazemos parte da raça humana. E a raça humana está impregnada de paixão.

Medicina, direito, gestão, engenharia são nobres actividades necessárias à vida.

Mas a poesia, a beleza, o romance, o amor são as coisas que nos fazem viver."

                  (Extraído do filme O Clube dos Poetas Mortos)

Não deixes


Não deixes que termine o dia sem teres crescido um pouco,
sem teres sido feliz, sem teres aumentado os teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém retire o direito de te expressares,
que é quase um dever.
Não abandones as ânsias de fazer da tua vida algo extraordinário.
Não deixes de acreditar que as palavras e a poesia podem mudar o mundo.
Aconteça o que acontecer a nossa essência ficará intacta.
Somos seres cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Derruba-nos, ensina-nos, converte-nos em protagonistas de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua:
tu podes tocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque os sonhos tornam o homem livre.
              Walt Whitman

Timidez


Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras distantes...

- palavras que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

- e um dia me acabarei.
            Cecília Meireles

You are welcome to Elsinore


Entre nós e as palavras há metal fundente

entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos a morte      violar-nos     tirar

do mais fundo de nós o mais útil segredo

entre nós e as palavras há perfis ardentes

espaços cheios de gente de costas

altas flores venenosas      portas por abrir

e escadas e ponteiros e crianças sentadas

à espera do seu tempo e do seu precipício


Ao longo da muralha que habitamos

há palavras de vida há palavras de morte

há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar

há palavras acesas como barcos

e há palavras homens, palavras que guardam

o seu segredo e a sua posição


Entre nós e as palavras, surdamente,

as mãos e as paredes de Elsenor


E há palavras nocturnas palavras gemidos

palavras que nos sobem ilegíveis à boca

palavras diamantes palavras nunca escritas

palavras impossíveis de escrever

por não termos connosco cordas de violinos

nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar

e os braços dos amantes escrevem muito alto

muito além do azul onde oxidados morrem

palavras maternais só sombra só soluço

só espasmos só amor só solidão desfeita


Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

          Mário Cesariny
 

Amoras

O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.


         Sophia de Mello Breyner Andresen

Toda a poesia é luminosa


Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
         Eugénio de Andrade

Touched By An Angel


We, unaccustomed to courage
exiles from delight
live coiled in shells of loneliness
until love leaves its high holy temple
and comes into our sight
to liberate us into life.

Love arrives
and in its train come ecstasies
old memories of pleasure
ancient histories of pain.
Yet if we are bold,
love strikes away the chains of fear
from our souls.

We are weaned from our timidity
In the flush of love's light
we dare be brave
And suddenly we see
that love costs all we are
and will ever be.
Yet it is only love
which sets us free. 
      Maya Angelou

Shall I Compare Thee To A Summer's Day?

Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate.
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer's lease hath all too short a date.
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimmed;
And every fair from fair sometime declines,
By chance, or nature's changing course, untrimmed;
But thy eternal summer shall not fade,
Nor lose possession of that fair thou ow'st,
Nor shall death brag thou wand'rest in his shade,
When in eternal lines to Time thou grow'st.
So long as men can breathe, or eyes can see,
So long lives this, and this gives life to thee.


          William Shakeaspeare

Hélène


Azur! C'est moi... Je viens des grottes de la mort
Entendre l'onde se rompre aux degrés sonores,
Et je revois les galères dans les aurores
Ressusciter de l'ombre au fil des rames d'or.

Mes solitaires mains appellent les monarques
Dont la barbe de sel amusait mes doigts purs;
Je pleurais. Ils chantaient leurs triomphes obscurs
Et les golfes enfuis aux poupes de leurs barques.

J'entends les conques profondes et les clairons
Militaires rythmer le vol des avirons;
Le chant clair des rameurs enchaîne le tumulte,

Et les Dieux, à la proue héroïque exaltés
Dans leur sourire antique et que l'écume insulte,
Tendent vers moi leurs bras indulgents et sculptés.
          Paul Valéry

Her dream


I dreamed as in my bed I lay,
All night's fathomless wisdom come,
That I had shorn my locks away
And laid them on Love's lettered tomb:
But something bore them out of sight
In a great tumult of the air,
And after nailed upon the night
Berenice's burning hair.


         William Butler Yeats

Annabel Lee


It was many and many a year ago,
In a kingdom by the sea,
That a maiden there lived whom you may know
By the name of Annabel Lee;
And this maiden she lived with no other thought
Than to love and be loved by me.

I was a child and she was a child,
In this kingdom by the sea;
But we loved with a love that was more than love-
I and my Annabel Lee;
With a love that the winged seraphs of heaven
Coveted her and me.

And this was the reason that, long ago,
In this kingdom by the sea,
A wind blew out of a cloud, chilling
My beautiful Annabel Lee;
So that her highborn kinsman came
And bore her away from me,
To shut her up in a sepulcher
In this kingdom by the sea.

The angels, not half so happy in heaven,
Went envying her and me-
Yes!- that was the reason (as all men know,
In this kingdom by the sea)
That the wind came out of the cloud by night,
Chilling and killing my Annabel Lee.

But our love it was stronger by far than the love
Of those who were older than we-
Of many far wiser than we-
And neither the angels in heaven above,
Nor the demons down under the sea,
Can ever dissever my soul from the soul
Of the beautiful Annabel Lee.

For the moon never beams without bringing me dreams
Of the beautiful Annabel Lee;
And the stars never rise but I feel the bright eyes
Of the beautiful Annabel Lee;
And so, all the night-tide, I lie down by the side
Of my darling- my darling- my life and my bride,
In the sepulcher there by the sea,
In her tomb by the sounding sea. 

        Edgar Allan Poe

Poema Sujo

turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro
menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma?
claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica
e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva igual a tua bocetinha
que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor
e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo
(não como a tua boca de palavras) como uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia


         Excerto de “Poema Sujo”, de Ferreira Gullar

Para ser grande

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa

A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.


Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

          Carlos Drummomd de Andrade

Sailing to Byzantium

That is no country for old men. The young
In one another’s arms, birds in the trees
—Those dying generations—at their song,
The salmon-falls, the mackerel-crowded seas,
Fish, flesh, or fowl, commend all summer long
Whatever is begotten, born, and dies.
Caught in that sensual music all neglect
Monuments of unageing intellect.

An aged man is but a paltry thing,
A tattered coat upon a stick, unless
Soul clap its hands and sing, and louder sing
For every tatter in its mortal dress,
Nor is there singing school but studying
Monuments of its own magnificence;
And therefore I have sailed the seas and come
To the holy city of Byzantium.

O sages standing in God’s holy fire
As in the gold mosaic of a wall,
Come from the holy fire, perne in a gyre,
And be the singing-masters of my soul.
Consume my heart away; sick with desire
And fastened to a dying animal
It knows not what it is; and gather me
Into the artifice of eternity.

Once out of nature I shall never take
My bodily form from any natural thing,
But such a form as Grecian goldsmiths make
Of hammered gold and gold enamelling
To keep a drowsy Emperor awake;
Or set upon a golden bough to sing
To lords and ladies of Byzantium
Of what is past, or passing, or to come.


                 W. B. Yeats

As pombas

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
Das pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüinea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam
Os sonhos, um a um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.


          Raimundo Correa

Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

                 Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto' 

Quando



Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

          Sophia de Mello Breyner Andresen, in Dia do Mar

Let's Put It To Music

How do you feel about me
Now that you've learned to know me?
Why don't we both admit
That something is happening.
And we would feel better if
We'd just tell each other
No need to keep it to ourselves.
Let's put it to music
Let's put it to music
Let's sing about it
Laugh about it
Clap our hands
And shout about it
Let the whole world hear it
In a sweet, sweet melody
Let's put it to music, you and me.

           Johnny Cash